A CRISE MUNDIAL E A CIDADE DE DEUS

    Entramos no século 21 com dois acontecimentos que merecem reflexão. O primeiro foi o atentado do dia 11 de setembro contra os Estados Unidos, e o outro, a Conferência de Durban, na África do Sul, sobre o racismo, ocorrida alguns dias antes. Ambos acontecimentos retratam a nova realidade de um mundo sem fronteiras, globalizado, e nos convidam a viver neste mundo de uma forma mais cristã e fraterna.

 

    Na crônica que Rubem Alves escreveu sobre o atentado, ele compara os EUA, nação rica e poderosa, que sempre se considerou protegida do resto do mundo, a um cavaleiro medieval que se julgava seguro dentro da armadura que vestia. Nada poderia atingi-lo, nenhuma flecha ou lança conseguiria perfurar a sólida couraça, até o dia em que pisou num formigueiro e, de repente, dezenas, centenas delas, começam a entrar pelas frestas da armadura, picando o pobre cavaleiro que se vê desesperado lutando para arrancar aquele monte de latas e se livrar dos minúsculo insetos. O atentado nos revelou que todo esquema de proteção tem suas frestas.

 

    A conferência sobre racismo organizada pelas Organização das Nações Unidas, cujo propósito era promover a harmonia global, terminou em insultos, desentendimentos e indignações, revelando a fragilidade e a vulnerabilidade das relações humanas. A conferência de Durban nos mostrou nossa intolerância.

 

    O atentado e o encontro em Durban revelaram as frestas que sempre existirão. Expuseram as diferenças que tendem a aumentar. Não é mais possível imaginar uns poucos vivendo seguros e protegidos, enquanto muitos outros vão sendo cada vez mais excluídos e marginalizados. Temos diante de nós o mundo que Deus criou e o ser humano criado à sua imagem e semelhança - precisamos agora pensar em como iremos viver.

 

    Nossa segurança só será possível na medida em que vivermos mais dependentes de Deus e mais fraternalmente uns com os outros. O salmo 46 foi escrito num cenário de violência. As imagens do texto são violentas. Há violência na natureza, violência na política, violência militar. É um salmo escrito para um cenário como o nosso, que vê os recursos naturais se esgotando e o sistema ecológico protestando contra a ambição desenfreada do ser humano. Um cenário onde as nações se mostram raivosas e intolerantes, rangendo os dentes e desfilando seus arsenais bélicos ameaçando quem se levantar contra elas.

 

    É dentro deste quadro caótico que a oração acontece. A oração existe, não para nos colocar fora do conflito, mas para que mantenhamos nosso olhar na direção correta. O propósito da oração não somos nós, mas Deus, o Deus que reina e governa para sempre. A oração sempre lida com Deus e não com as circunstâncias. É por isto que o salmo afirma: "O Senhor dos Exércitos está conosco, o Deus de Jacó é o nosso refúgio". Deus é apresentado como o Senhor dos exércitos, que revela o seu domínio e comando, e como o Deus de Jacó, que mostra sua pessoalidade. É um Deus poderoso e que participa da nossa história, relacionando-se conosco. Nele experimentamos segurança e intimidade.

 

    Em contraste com a atmosfera de violência e conflitos que estamos vivendo, há uma cidade de Deus, que nos encoraja a viver e orar num mundo violento: "Há um rio, cujas correntes alegram a cidade de Deus, o santuário das moradas do Altíssimo. Deus está no meio dela; jamais será abalada; Deus a ajudará deste antemanhã.". Esta cidade não está situada num futuro distante, escatológico - é uma realidade presente. É um lugar onde Deus habita. Um lugar onde não são as ameaças bélicas, nem mesmo as sanções econômicas, que determinam a realidade. O Reino de Deus é este lugar real, visível, histórico, onde a justiça acontece, o amor é experimentado, o preconceito é rompido, a generosidade é extravagante e o perdão oferecido.

 

    Penso que é dentro deste contexto da cidade de Deus que Jesus afirma sua vitória sobre o mundo. Vítima da violência dos homens, ele consola seus discípulos dizendo: "No mundo tereis aflições. Mas tende bom ânimo, eu venci o mundo". Que mundo ele venceu? Este mesmo mundo que nos ameaça. Jesus não permitiu que a agenda violenta das ameaças determinasse sua agenda de amor, perdão e justiça. Ele venceu o mundo.

 

    Junto àquela cidade há um rio que flui trazendo vida e a verdade de que ela jamais será abalada. Montanhas caem, mares se enfurecem, reinos desabam, mas a cidade de Deus permanece. Ela é segura não porque seja inviolável, mas porque encontra-se sob o domínio do Senhor dos Exércitos e é guardada pelo Deus de Jacó. Deus é seu socorro bem presente.

 

    Este salmo nos convida primeiramente a contemplarmos as obras do Senhor. Quem não ora depende dos jornais para entender o mundo. Ao orarmos, vemos Deus agindo, cumprindo seus desígnios, estabelecendo seu juízo. Vemos Deus definindo os limites da guerra, despedaçando os arcos e queimando os carros no fogo. Deus está engajado na história, na nossa história. É preciso abrir os olhos para vermos o que Deus está fazendo.

 

    O segundo convite é para nos aquietarmos e sabermos que só o Senhor é Deus. Se cremos que Deus é o Criador e se encontra no centro de todas as coisas, conduzindo-as para o fim que ele mesmo determinou, é essencial que estejamos quietos, reverentes e silenciosos para ouvir sua voz e discernir seus propósitos. Se cremos que Deus tem um propósito para este mundo, para nossa família e igreja, precisamos nos silenciar e buscar ouvir o que ele está falando.

 

    O mundo está cheio de frestas, de intolerância, de insegurança e de violência. Entrar e viver na cidade de Deus é resistir à violência, aos apelos racistas e raivosos, a nos curvar diante de qualquer poder que não seja aquele demonstrado na cruz do Calvário. Entrar na cidade de Deus é continuar vivendo sem medo do ser humano, amando, perdoando, andando a segunda milha, oferecendo a outra face, abençoando e bendizendo. Somente assim poderemos viver seguros e em paz.

 

    Pr. Ricardo Barbosa de Souza.