O CORAÇÃO E CHAMAS DO VERDADEIRO EVANGELÍSTA.
 

    Não existe história, apenas biografias. A frase não é minha,

mas quero tomá-la emprestada de quem a usou pela primeira vez, para referir-me a John Wesley, um dos meus heróis. Sua biografia é impressionante.     Wesley ainda permanece como um dos ícones legendários da história universal e eclesiástica. A ele cabem as mesmas palavras proferidas pelo grande Rui     Barbosa à beira do túmulo de Machado de Assis: “Para os eleitos do mundo das idéias a miséria está na decadência, e não na morte. A nobreza de uma nos preserva das ruínas da outra”. A excelência de Wesley, sua vida, idealismo, vigor e acima de tudo, paixão pela mensagem da cruz, lhe preservam no panteão dos grandes heróis pós-Atos. Entre os dezenove filhos de Samuel e Susana Wesley, foi ele, ladeado por seu irmão Charles, quem mais se destacou como estadista, reformista e avivalista. Quero resgatar a sua maior paixão, evangelizar.
 
    O dia 24 de maio de 1738 marcou sua peregrinação espiritual. Wesley participava de uma reunião da Sociedade Missionária dos Morávios quando seu “coração foi aquecido de modo estranho”. Wesley, inflamado por sua experiência com o Espírito Santo, saiu pregando a salvação pela fé. A igreja anglicana daqueles dias, sacramentalista e engessada, não demorou a fechar as portas para Wesley. Daí, ele e os metodistas que o acompanhavam, partiram para a pregação ao ar livre. Uma quebra de paradigmas para os seus dias.
 
    Mesmo depois de séculos após sua morte, depois de inúmeras obras escritas na tentativa de entendê-lo, depois dos processos de institucionalização e secularização de enormes segmentos da igreja metodista, depois que muitas instituições de ensino metodista se contaminaram com a teologia liberal; Wesley permanece como o grande referencial de fé, santidade e compromisso com o reino de várias denominações cristãs ao redor do mundo. A ele atribui-se, inclusive, o arcabouço teológico que possibilitou o crescimento do movimento pentecostal.
 
    Conheci um pouco da vida de Wesley nas histórias que se contam a seu respeito. Quantos quilômetros viajou a cavalo, quantos sermões pregou em vida e seu impacto social na Inglaterra. Os historiadores concordam que o avivamento evangélico do século XVIII poupou o reino britânico de uma revolução sangrenta como a francesa.
 
    Eu morava nos Estados Unidos em 1979 quando li “The Burning Heart – John Wesley: Evangelist”, escrito por A. Skevington Wood (Bethany Fellowship, 1978). Wood, pastor da Igreja Metodista de Southlands em York, Inglaterra, estudioso da vida e obra de Wesley inquietou-se por notar que havia pouquíssima literatura sobre sua paixão evangelística. Falou-se muito sobre a vida de Wesley, sua ética e seu compromisso social e teológico. Mas, segundo Wood, são poucos os que percebem que o propósito maior pelo qual Deus levantou seu servo foi para evangelizar a consciência de uma nação.
 
    Qual o segredo deste homem que viajou mais de duzentos e cinqüenta mil milhas a pé, de carruagem ou a cavalo, pregou mais de quarenta mil sermões, e ainda encontrou tempo para escrever cerca de duzentos e cinqüenta livros? Qual era a sua paixão maior? O que o motivava com tamanha força de vontade? Wesley amava a mensagem da cruz e acreditava que nela estava o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê.
 
    Wesley, primeiramente, se decepcionou com os seus esforços rigorosos e ascéticos de produzir, por si mesmo, a paz interior. Não encontrava o sentido existencial de sua missão. Triste e abatido, voltou-se para aquele que poderia lhe dar sossego de alma, Jesus Cristo.
 
    Tentara ser um missionário nos Estados Unidos. Com um zelo digno dos melhores religiosos partiu, no navio Simmonds em 14 de outubro de 1735, com o objetivo de evangelizar os índios da Geórgia. Mal sabia que Deus tinha outros planos. O que Deus queria fazer em Wesley era maior do que tinha para fazer através dele. A cópia de uma carta escrita por Wesley a bordo do Simmonds só foi descoberta recentemente. Seu conteúdo revela como estava perturbado. “Em vão tenho fugido de mim mesmo para a América. Ainda choro sob o intolerável peso de minha miséria. Se ainda não me arrependi deste projeto é porque nada espero da Inglaterra ou do paraíso. Aonde for levarei o meu inferno comigo...”
 
    Ainda a bordo conheceu alguns missionários morávios e depois que chegou à Geórgia, conversou com August Gottlieb Spangenberg que depois do conde Zinzendorf era a segunda pessoa na sociedade dos Morávios. Quando pediu ajuda sobre sua obra missionária Spangenberg foi direto na jugular: “O Espírito de Deus testifica com o seu espírito que você é filho de Deus?” Wesley se espantou com a linguagem direta e sem rodeios do outro missionário. Spangenberg continuou como numa rajada de metralhadora: “Você conhece Jesus Cristo?” Wesley engasgou: “Sei que ele é o salvador do mundo.” Seu interlocutor não lhe dava tréguas e fustigou mais uma vez: “Verdade,” concordou Spangenberg, “mas você sabe se ele já lhe salvou?” A hesitação de Wesley chegava a ser vergonhosa: “Espero que ele tenha morrido para me salvar”. Spangenberg pressionava com a mesma intensidade: “Você sabe disso com certeza?” Sem coragem para falar, Wesley apenas resmungou: “Sei, sim”. Anos depois, confessou em seu diário que aquele “sei, sim”, foram palavras vãs.
 
    Depois que voltou para a Inglaterra, sentindo-se derrotado e triste, Wesley nasceu como verdadeiro filho de Deus, no memorável 24 de maio de 1738, aniversário espiritual de um dos mais completos evangelistas de toda a história do cristianismo. O marco foi tão significativo que Wesley afirmou: “acabaram-se todas as disputas.”  No prefácio de sua narrativa de conversão, ele nos conta que dois alicerces marcaram o dia em que finalmente Cristo tornou-se seu salvador: “1) renunciar de forma absoluta, minhas obras ou minha justiça, que me serviam de base para salvação; 2) acrescentar ao viver todos os meios da graça: oração, dependência completa no sangue que Cristo derramou por mim, confiança nele como o meu Cristo, minha única justiça, santificação e redenção” (grifo original).
 
    Os evangélicos brasileiros precisam redescobrir Wesley. Ele pode nos ajudar a nos desvencilharmos de uma cultura excessivamente pragmática. As demandas do mundo urbanizado em que o tempo se torna cada vez mais exíguo. Com menos tempo para cuidarmos de nossa alma, acabamos consumidos pelas engrenagens da máquina religiosa e apenas papagaiando jargões que há muito perderam o sentido ou a profundidade. A avidez com que Wesley lia, sua sede de conhecer, deram-lhe uma profundidade teológica impressionante. Quão distante do evangelista pós-moderno que se especializa em superficialidades, se contenta em produzir emotividade instantânea e vive da sua dramaturgia. Necessitamos devolver a boa teologia ao conceito evangelístico. Os pregoeiros da justiça precisam ser mais densos, precisam chamar o seu auditório a entender, internalizar e viver as verdades bíblicas.
 
    “Meu chão é a Bíblia,” Wesley declarou certa vez.  “Sim, eu sigo a Bíblia em todos os assuntos, grandes ou pequenos. Ela é a pedra de apoio em que os cristãos examinam todas as revelações, reais ou supostas.”  Aconselhou seus evangelistas: “Nunca aceitem nada sem testar... não creiam em nada que não tenha sido claramente confirmado por passagens das escrituras...”
 
    Wesley era pregador da graça. Embora, a primeira geração de metodistas tenha sido de homens e mulheres comprometidos com santidade e o texto de Hebreus 12.14 (Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor) fosse o lema de milhões, ninguém jamais esqueceu a Graça. Wesley alinhava-se à Reforma protestante e enfatizava a Sola Gratia e Sola Fide. Em junho de 1738, pregou um sermão em Oxford e afirmou: “A mesma graça livre nos concede hoje vida, respiração e tudo mais, pois não há nada que somos ou temos ou fazemos que não provenha da mão de Deus. ‘Todas as nossas obras, tu, oh Deus as fazes por nós’. Assim, elas são tantas outras manifestações de livre misericórdia, e toda justiça encontrada no homem, será também uma dádiva de Deus. Então como o pecador fará expiação pelo menor de seus pecados? Com suas próprias obras? Não. Ainda que estas sejam muitas ou sejam santas, não provêm dele, mas senão de Deus...Se, portanto, os pecadores acharem graça diante de Deus, é ‘graça sobre graça’...´Pela graça então sois salvos, mediante a fé’. A graça é a fonte e a fé a condição da salvação.”
 
    A igreja evangélica distancia-se muito da Reforma protestante e afasta-se muito do pensar wesleyano ao calcar sua prática evangelística sobre sacrifícios, penitências e boas obras (principalmente dízimos e ofertas) para se “alcançar o favor de Deus.” Quando ouço programas de rádio ou de televisão ensinando técnicas de oração, campanhas sucessivas de como receber o que desejamos de Deus, lamento que o esforço de heróis da fé escorra na sarjeta de um paganismo disfarçado. Tantos movimentos evangélicos atuais não podem mais falar da graça sem muitos senões. Evangelistas bem sucedidos não são aqueles que atraem multidões, mas aqueles que sabem explicar a justificação de pecadores pela graça.
 
    Wesley foi dono de um currículo invejável. Tudo o que fez, entretanto poderia ser resumido apenas como um homem à frente do seu tempo. Rompeu paradigmas, amou os excluídos e pregou a graça. Viveu apaixonadamente anunciando a mensagem que mais admirava: o Calvário. Os evangélicos brasileiros, inclusive os metodistas, precisam redescobrir John Wesley. Seu legado não apenas enriquece como pode ajudar a vivermos um cristianismo com o coração aquecido.
 

    Soli Deo Gloria.

 

    Ricardo Gondim Rodrigues.