O VALOR DA NARRATIVA PESSOAL

 

    Li recentemente uma crônica de Luiz Fernando Veríssimo onde ele descreve, com sua habilidade e ironia peculiar, as frustrações que experimentamos diante das inúmeras alternativas que temos na vida. Freqüentemente nos perguntamos, com uma forte dose de frustração: "Por que não aceitei aquele convite? Por que não mudei para aquela cidade? Por que não fiz vestibular para medicina? Por que não casei com aquela pessoa?" Veríssimo, naquela crônica, nos faz perceber que no final, o melhor mesmo foi ter sido aquilo que escolhemos ser.

 

    A leitura do texto fez-me pensar. Considerei o quanto a vida é fragmentada e rompida por causa das frustrações e desilusões que sofremos. Ao lamentar as escolhas erradas, as oportunidades perdidas, as experiências que tivemos ou as que evitamos ter, rompemos com nossa história e criamos um processo descontinuado em nossas narrativas pessoais que compromete nosso crescimento e amadurecimento.

 

    Converso com muitas pessoas e um fato comum entre a maioria delas é a vontade de esquecer aquilo que, de alguma forma, provoca lembranças desagradáveis. Procuram, através de toda forma de terapia ou ativismo, apagar da memória as escolhas erradas e as experiências desagradáveis. As traições, os abusos, os abandonos e as mentiras são experiências que procuramos ignorar. Se fosse possível, apagaríamos do livro da nossa história tais episódios. Mas a história de cada um é escrita com todas as cores, e todas elas estão presentes em nossas escolhas e relacionamentos. Ignorá-las ou tentar apagá-las não fará delas uma realidade menos presente.

 

    A Bíblia é um livro de histórias porque Deus se preocupa com nossas narrativas pessoais. Encontramos no Velho Testamento histórias de Abraão, Isaque, Jacó, José, Moisés, Davi, Elias, Sanção, Rute etc. São histórias onde episódios trágicos, experiências ruins, perseguições, traições, mentiras, paixões confusas e desejos desordenados são vividos com toda a intensidade.

 

    José, filho de Jacó, é uma destas histórias. Sua família era disfuncional. Seu dom de discernir sonhos e a declarada predileção de seu pai por ele despertou um ciúme assassino em seus irmãos. Ainda adolescente, foi um dia, a pedido do seu pai, visitar seus irmãos no campo para ver como eles e o rebanho estavam. Assim que se aproximou, o ciúme acumulado em todos aqueles anos explodiu numa fúria vulcânica e seus irmãos decidiram matá-lo. Rúben, um dos irmãos, os convenceu de não cometerem tal loucura e sugeriu que o colocassem num poço, ganhando com isso tempo para convencê-los a deixarem José voltar para casa. Enquanto comiam e discutiam o futuro de José, viram ao longe uma caravana de ismaelitas e Judá, outro irmão, sugeriu que ele fosse vendido como escravo. Com isso, resolviam dois problemas: não o matariam e se livrariam dele. Assim foi feito.

 

    A história de José segue dramaticamente. O filho predileto de Jacó é agora escravo, vendido pelos próprios irmãos. Ao chegar no Egito, José é comprado por Potifar, um oficial da guarda do soberano faraó. O rapaz serviu Potifar com zelo e temor a Deus. Ao ver que seus negócios prosperavam nas mãos de José, o oficial colocou-o para morar em sua casa e administrar todos os seus bens. Mas, por ser um jovem bonito e atraente, a mulher de Potifar tenta seduzi-lo e, ao resistir alegando sua fidelidade ao seu Senhor, José foge nu porque seu manto ficou nas mãos da mulher de Potifar, que tentara agarrá-lo. Esta denúncia o coloca na prisão.

 

    Depois de passar muito tempo preso, José interpreta os sonhos de dois prisioneiros. Seus dons chegam ao conhecimento do faraó que, atormentado por seus próprios sonhos, pediu que chamassem José. Ao interpretá-los, o hebreu foi colocado no comando dos negócios do Egito, tornando-se, depois do faraó, o homem mais importante daquela nação. Depois de administrar os sete anos de abundância, José consegue manter abastecidos os silos do Egito nos tempos de carência. Agora, no meio do período de grande fome, Jacó, sabendo que no país de faraó havia abundância de cereais, mandou seus filhos ao Egito para comprarem comida. Na segunda viagem ao Egito, José então se apresenta aos seus irmãos.

 

    Este é um resumo da história de José. Imagino que entre sua venda aos ismaelitas até o momento em que ele se revela aos irmãos no Egito, passaram-se pelo menos uns quinze anos. Quinze anos longe de casa. Quinze anos marcados pela traição, mentira e ciúme. José tinha todos os ingredientes para cultivar um espírito rancoroso e vingativo, todos os elementos emocionais para querer passar uma borracha na sua história, nunca mais se lembrar do que aconteceu. E possuía, na sua condição, todos os recursos para uma vingança em alto estilo, com todos os requintes de crueldade.

 

    No entanto, para nossa surpresa, José, ao revelar-se para seus irmãos - e diante do pânico que ficaram ao saber que ele, além de vivo, era agora o homem que os tinha em suas mãos -, os acalmou e disse: "Não foram vocês que me mandaram para cá, e sim, o próprio Deus". Com esta afirmação, José tira das mãos dos seus irmãos, de Potifar e sua esposa, de faraó e seus magos, a condução de sua trajetória, reconhecendo que ela sempre foi escrita pelo Deus todo poderoso. Sua história é redimida; seu passado é integrado ao propósito redentor de Deus.

 

    Se José tivesse escolhido ignorar sua história e nunca mais se lembrar dos irmãos, apagando de sua memória todas as traições e mentiras que sofreu, certamente teria desenvolvido uma amargura desumana em sua alma e um desejo de vingança que lhe roubaria a dignidade e o afastaria do propósito redentor de Deus. No entanto, José não fragmentou sua história, nem negou seu passado; tampouco omitiu nenhum evento, bom ou ruim, que experimentou. Foi esta capacidade de dar atenção à sua história e reconhecer que fora escrita por Deus, e não pelas mãos maldosas de seus irmãos, que fez com que ele olhasse para sua gente com compaixão, os abraçasse e afirmasse que foi Deus que o preservou para aquele fim - a salvação do seu povo.

 

    Não ignore sua história, não tente apagar aquilo que considera ruim ou trágico. Não olhe para sua vida de forma descontinuada e fragmentada. Só é possível compreender a vontade de Deus e viver de forma plena e íntegra quando aprendemos a crer que a história de cada um é escrita pelas mãos de um Deus amoroso.

 

    Pr. Ricardo Barbosa de Souza.