UM OUTRO ESPÍRITO

 

    A caminhada do povo de Israel do Egito para a terra prometida tem sido considerada, na história do Cristianismo, como um paradigma da nossa jornada espiritual.             Os 40 anos de peregrinação pelo deserto trouxeram à luz tudo o que havia de melhor ou pior na existência daquele povo. O livro de Deuteronômio deixa claro o propósito espiritual e pedagógico do deserto ao declarar: "Lembrem-se de como o Senhor, o seu Deus, os conduziu por todo o caminho do deserto, durante estes 40 anos, para humilhá-los e pô-los à prova, a fim de conhecer suas intenções, se iriam obedecer aos seus mandamentos ou não". Assim também tem sido nossa jornada de fé. Entre nossa conversão e o descanso eterno, vivemos inúmeras experiências e todas elas revelam o que há de bom ou ruim em nosso espírito.

 

    Um dos episódios marcantes na história do povo de Israel durante a peregrinação foi a reação que tiveram diante do relato dos espias, narrado em Números 14. Deus pediu a Moisés que enviasse 12 homens, um de cada tribo, para espiar a terra e trazer um relatório. Sua descrição foi de que tratava se de uma terra fértil conforme Deus havia prometido. Como prova, trouxeram amostras de frutos - figos, romãs, uvas. Só um cacho de uvas, que foi pendurado numa vara, precisou ser carregado por dois homens. Este era o lado bom do relatório. O lado ruim era a descrição dos povos que viviam lá. Os espiões viram guerreiros de grande estatura, cidades fortificadas e exércitos poderosos. E todos os 12 concordaram com o relatório.

 

    A diferença surgiu quando tiveram que decidir se entrariam ou não naquela terra. Dez dos 12, preocupados com os riscos de uma tragédia sem precedentes, foram incisivos e inflamaram o povo, insistindo para que não cometessem aquela loucura. As chances eram mínimas. De fato eram, se considerados apenas os dados do relatório. O resultado daquela reação foi dramático. Na mesma noite, o que se ouvia era o choro de revolta do povo contra seus líderes Moisés e Arão. Disseram a eles que teria sido melhor se o povo tivesse morrido no Egito ou mesmo no deserto. Alguém propôs então voltar para o Egito e retornar à escravidão; seria mais seguro para suas famílias, argumentou-se. Outro imediatamente propôs a substituição dos líderes para que um outro dirigente os conduzisse no caminho de retorno à terra de Faraó.

 

    O ódio contra Moisés e Arão levou o povo de Israel a perder a sanidade. Houve até quem sugerisse o apedrejamento dos líderes, e logo todos apoiaram a idéia. O cenário era tenso. Moisés e Arão, os líderes, e Calebe e Josué, os espias, foram os únicos que insistiam em prosseguir. Eles prostaram-se diante da assembléia, rasgaram suas vestes e mais uma vez mostraram que o fruto da terra era bom e que Deus havia prometido aquele lugar para eles - era preciso apenas crer e confiar que o Senhor de Israel haveria de lhes dar a vitória. Mas nem isso adiantou. A revolta era grande, e o desespero o impedia o povo de lembrar do que Deus já havia feito e de crer em suas promessas.

 

    Deus então intervém com grande ira e indignação. Seu desejo é destruir aquele povo incrédulo e ingrato. Moisés ora e suplica para que Deus não destrua o povo, mas que seja misericordioso com Israel. O Senhor atende a súplica de Moisés, mas não abre mão de impor disciplina pelo pecado. O castigo foi dar a eles o que haviam pedido - não entrar na terra prometida. A sentença do Senhor era esta: "Cairão neste deserto os cadáveres de todos vocês".

 

    Por outro lado, a sentença que Deus deu a Calebe, um daqueles espias que permaneceu crendo e confiando nas promessas divinas, foi bem diferente. O Senhor garantiu: "Como meu servo Calebe tem outro espírito e me serve com integridade, eu o farei entrar na terra". Gosto da forma como Deus se refere a Calebe, dizendo que tem "outro espírito". Quando falamos em espiritualidade cristã, falamos daquilo que o Espírito Santo realiza em nós, bem como da forma como o nosso espírito responde a Deus, à sua Palavra e ao que ele faz na vida e na história de cada um.

 

    Calebe tinha um jeito diferente de ver as coisas. Analisava as mesmas circunstâncias sob um outro prisma. Procurava enxergar o que Deus fazia. Ele era capaz de lembrar de maravilhas como o mar se abrindo, a água saindo da rocha e o maná caindo do céu. Aquele servo do Senhor impressionava-se mais com o poder de Deus do que com as ameaças dos outros povos. Não se deixou inflamar pela pressão dos violentos guerreiros inimigos, nem pela fúria insana do povo de Israel. Calebe tinha "outro espírito" e isso fez toda a diferença na história.

 

    Durante os 40 anos no deserto, Calebe seguiu a Deus de forma íntegra e ali moldou o seu espírito. Ele aprendeu o caminho da humildade, experimentou o poder de Deus, construiu um caráter sólido, teve sua fé testada, amadureceu sua confiança e provou o amor e cuidado de Deus, vendo que o Senhor sempre cumpre aquilo que promete. Sua fé, coragem e esperança não estavam alicerçadas na lógica da guerra, mas na Palavra de Deus; não nas garantias de que tudo iria dar certo, mas na certeza de que Deus estava com ele e que sua vontade é sempre boa.

 

    No momento mais tenso e decisivo da história de Israel, o espírito de cada um foi revelado. A grande maioria do povo mostrou possuir um espírito revoltado, murmurador e incrédulo. Uma insignificante minoria, quatro no meio de dezenas de milhares, mostrou possuir espírito íntegro, grato e submisso a Deus e à sua vontade. Isso fez toda a diferença.

 

    Tenho encontrado pela vida afora inúmeras pessoas que se assemelham àquela grande multidão de israelitas. É gente cujo espírito tem sido influenciado pela mídia, pelos apelos e pressões da maioria, pela sedução do poder, pelo caminho fácil, pelo medo do novo, pela necessidade permanente de reclamar, queixar-se e murmurar. Um espírito que prefere permanecer escravo de um passado seguro do que experimentar as promessas de Deus. Mas tenho também encontrado algumas pessoas - não muitas - cujo espírito tem permanecido atento ao que Deus está fazendo, que não se intimidam e nem se deixam seduzir pelo poder. É gente que tem os olhos abertos para ver o invisível e seguem crendo no Senhor. Estas são as pessoas que têm um "outro espírito" e, como Calebe, participarão da história da redenção.

 

    Pr. Ricardo Barbosa de Souza.