RELIGIÃO É A COCAÍNA DO POVO                                          

                                                

    Vivi parte de minha adolescência nas décadas de sessenta e setenta. Naqueles anos, os Beatles e os Rolling Stones reinavam na música. Discutia-se o existencialismo de Sartre nos barzinhos de Ipanema. As mulheres se libertavam lendo Simone de Beauvoir. Che Guevara inspirava os ideais revolucionários dos latino-americanos. As drogas se tornaram uma obsessão mundial. Muitos jovens caminhavam pelas trilhas que começavam em Amsterdã, seguiam pelo Afeganistão e chegavam à Índia em busca de haxixe. A maconha deixou de ser consumida no submundo da marginalidade e dominou as universidades das Américas. Tomavam-se doses mínimas de LSD para viajar por horas no mundo alucinógeno. Os picos de heroína nas veias abreviavam a vida de milhares.


    Os tempos mudaram. A rebeldia dos jovens aquietou-se, os heróis comunistas ruíram, o consumismo substituiu as antigas aspirações revolucionárias e a “techno music” substituiu o rock. Aquelas drogas que entorpeciam e deixavam seus usuários num estado zen, foram suplantadas por outras que ativam, energizam e potencializam. Substituíram-se os tóxicos que causavam torpor por outros que davam uma sensação de poder e de autonomia. Assim, hoje quase não se fala mais em heroína ou LSD. As drogas da moda são a cocaína e sua versão mais barata, o crack. E cresce a busca pelas sintéticas, como o ecstasy, que prometem um melhor desempenho, inclusive sexual.

    A religião também mudou muito. Naqueles anos, predominava entre os jovens o conceito que a religião servia os interesses das elites, pacificando os oprimidos. Os debates reforçavam o pensamento de Karl Marx que em 1844 afirmou: “O sofrimento religioso é, a um único e mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real”. Marx acreditava que “a religião é o único suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas”. Meus contemporâneos repetiram sua conclusão: “A religião é o ópio do povo”.

    Marx não afirmava que a religião é um narcótico qualquer. Ele a identificava com um entorpecente poderosíssimo de seus dias: o ópio. As condições sociais perversas da Europa no século XIX condenavam os trabalhadores a pouco mais que escravos. Marx entendia que as mesmas condições também produziram uma religião que prometia um mundo melhor só para a próxima vida. Assim, tanto ele como seus seguidores difundiram que a religião não é apenas uma ilusão, mas cumpre a função social: de distrair os oprimidos. Por isso, afirmava que a religião é um narcótico que não apenas alivia a dor do trabalhador, como lhe embriaga, roubando o seu poder de transformar sua realidade. Para ele, a esperança religiosa era um ópio que prometia felicidade no porvir, adiando o furor revolucionário. O pior é que ele tinha razão em suas análises. A igreja de seus dias realmente estava decadente e, aliada à aristocracia, desempenhava exatamente esse papel anestesiante.

    Porém, com a pós-modernidade, a religião já não cumpre essa tarefa entorpecente. No ocidente, a proposta religiosa vem crescentemente se tornando mais parecida com outro tóxico: a cocaína. O neo-liberalismo, pai deste materialismo consumista tão bem representado no fascínio pelos shoppings e pelas grifes, já entorpece como o ópio. Por outro lado, a religião de hoje procura excitar e produzir sensações de poder parecidas com a da cocaína.

    As igrejas neopentecostais se multiplicam prometendo que as pessoas têm o direito de ser felizes aqui e agora. Repetem exaustivamente que ninguém precisa transferir para a eternidade o que pode ser reivindicado já. Insistem na promessa feita a Israel de que o fiel é “cabeça e não cauda”. E assim o crente que freqüenta os cultos da prosperidade, recebe semanalmente uma injeção de cocaína espiritual no sangue, fazendo que se sinta o dono do mundo. Nem que seja por apenas alguns minutos de culto, sonha com tudo o que os seus olhos gulosos viram as empresas de marketing anunciar na televisão.

    As igrejas se transformam em ilhas da fantasia capitalista. Empresários falidos, artistas em fim de carreira, jogadores de futebol mal-sucedidos, empregados sem qualificação, correm para as infindáveis campanhas em busca de reverter a pretensa “maldição” que paira sobre suas vidas. E, depois de espoliados, são devolvidos à dura realidade da vida, obrigados a encarar a rebordosa da segunda-feira. Dependurados nos trens suburbanos ou numa fila burocrática sofrem tristes e deprimidos como os foliões do carnaval que voltam para seu destino na madrugada da quarta-feira de cinza. Enfrentam sozinhos a dura realidade de que não são reis ou rainhas, apenas sub-empregados; obrigados a viverem com um salário miserável.

    A própria definição do que é fé vem sofrendo enormes mudanças. Antigamente entendia-se fé como uma adesão a um conceito teológico ou mesmo como uma habilidade sensitiva de perceber o mundo espiritual. Pessoas de fé discerniam as ações de Deus e do mundo espiritual com maior acuidade. Eram pessoas que confiavam no caráter de Deus, mesmo sem evidências que comprovassem sua palavra. Hoje se entende fé como uma mera capacidade de instrumentalizar os poderes de Deus egoisticamente. Por isso, fé e cocaína se parecem muito; dão uma falsa sensação de poder e geram pessoas artificialmente soberbas. Mas a ressaca tanto da cocaína como da fé pós-moderna é horrível, pois vem sempre acompanhada de depressão e desengano.

    O tóxico religioso de hoje é sempre estimulante. Por isso os novos mercadejadores da fé precisaram redefinir, inclusive, a pessoa de Deus. A divindade pós-moderna só existe para servir os caprichos das pessoas. Os cultos se transformaram em centros de aperfeiçoamento e aprimoramento humano. As igrejas deixaram de ser espaços para se cultuar a divindade, especializaram-se em ensinar como manipular Deus. As liturgias espiritualizam as técnicas mais populares de como “liberar o poder de Deus”, “afastar encostos”, “tomar posse dos direitos”, “conquistar gigantes”. As pessoas se aproximam de Deus cheias de direitos, vontades, acreditando que são o centro do universo e que tudo e todos lhes devem obrigações. Perde-se o estado de “maravilhamento”, reverência e submissão ao Eterno.

    Assim o propósito de toda atividade religiosa é homocêntrica, nunca teocêntrica. As igrejas acabam se transformando em balcões de serviços religiosos e a relação do pastor com os fiéis é a mesma do empresário com o cliente. Redobram-se os esforços de oferecer uma maior gama de atividades que agradem os clientes que se tornaram ferozes consumidores religiosos e com um nível de exigência tremenda.

    Acredito que a genuína mensagem do evangelho não pode ser comparada ao ópio como fez Marx e nem à cocaína, como fazem os pregadores da religiosidade pós-moderna.

    Jesus Cristo não prometeu um celeste porvir que anestesiava. Seus discípulos foram convocados a serem o sal da terra, levedarem a massa, enfrentarem os reis poderosos, transformarem a realidade aqui e agora. Antes que se levante o sol da justiça e que o Senhor volte trazendo salvação sob suas asas, Ele comissionou sua igreja a enfrentar as estruturas humanas que produzem a morte e declarar guerra ao próprio inferno. Tampouco, prometeu que nos tornaríamos os donos do mundo, ricos e prósperos. Fomos chamados para encarnarmos o mesmo sentimento que houve em Cristo, que sendo em forma de Deus não teve por usurpação ser igual a Deus, mas tomou a forma de servo, humilhando-se até a morte e morte de cruz.

    O culto não deveria ser diminuído e se transformar em um centro de auto-ajuda. Não precisamos aprender técnicas que nos ajudem a obter o favor de Deus. Precisamos sim aprender celebrar o seu grande amor de Pai que nos quer bem, apesar de nossa própria pequenez.

    Acredito que Marx estava certo quando denunciou o que acontecia com a igreja que se colocava a serviço das aristocracias. Aquela religião adoecida e morta realmente merecia a pecha de ópio do povo. Os líderes religiosos que comiam nas mesas dos poderosos e que desdenhavam da sorte dos miseráveis realmente buscavam entorpecer o povo.

    O que se oferece de muitos púlpitos pós-modernos não é o Evangelho de Jesus Cristo, mas mera cocaína religiosa. E se algum outro filósofo ateu afirmar que essa religião pragmática que se espalha no ocidente, combina com o narcótico da moda, também seremos obrigados a concordar. Já se ouve o murmúrio das pedras. Urge que os profetas comecem a falar.
    Soli Deo Gloria

    Ricardo Gondim