ORAÇÃO E DESEJOS

                                                    

    Se não me engano, foi Santo Agostinho que disse que "nosso contínuo desejo é nossa contínua oração". Parece-me que foi ele também que disse que se queremos conhecer uma pessoa, não devemos perguntar a ela o que faz, e sim, o que mais ama. Para ele, são os afetos, ou os desejos, que definem nossa identidade, e não nossa funcionalidade.

 

    A cultura moderna, por outro lado, permanece perguntando pelo que fazemos. O que fazemos, o que temos, é o que define quem somos. Somos seres funcionais - uma expressão da moda, do estilo ou do poder. A profissão, o status, a função, precedem a pessoa. Passamos a vida lutando para conquistar um lugar, uma posição, um padrão que nos garanta o respeito, a dignidade e o reconhecimento.

 

    No entanto, ao perguntar pelo que amamos, Agostinho coloca os afetos e os desejos no centro de nossa identidade, resgatando o significado da pessoa como um ser relacional, e não, funcional. Noutras palavras, somos o que desejamos, um reflexo daquilo que amamos.

 

    O problema é que nossos desejos são, muitas vezes, desordenados, confusos e pervertidos. Não apenas nossos desejos, mas também os desejos produzidos pela cultura que nos envolve; todos trazem consigo os sinais da corrupção, da queda e do pecado. Logo, nossos desejos e afetos precisam também de conversão.

 

    Julia Gatta, escrevendo sobre o pensamento de Walter Hilton, místico cristão que viveu na Inglaterra no século 14 e foi quem trabalhou arduamente o tema da conversão das emoções e dos afetos, afirma: "A totalidade do ser está envolvida no processo de união com Cristo. Tanto nossa mente como nossos sentimentos precisam caminhar em direção à conversão, à progressiva purificação e, finalmente, à transformação. A renovação intelectual, se não é mais fácil, no mínimo é um assunto relativamente mais simples, comparado com a redenção da afetividade. A emoção, especialmente a emoção religiosa, é um fenômeno complexo. O fruto do Espírito não pode ser igualado a um simples 'sentir-se bem'. Como em todos os outros aspectos da natureza humana, a afetividade precisa ser interpretada, disciplinada e, finalmente, redimida".

 

    O propósito da oração, entre outros, é nos levar a um profundo mergulho em nossos desejos e afetos. Se de um lado temos convicções convertidas, que foram transformadas pelo poder da Palavra de Deus e do Espírito, por outro lado temos também emoções e sentimentos cujas expectativas nem sempre correspondem às expectativas de nossas convicções. É bem possível que a procura por um equilíbrio espiritual entre razão e emoção não passe necessariamente por um intercâmbio entre o que é racional e o que é emocional, mas por uma conversão de ambos. Infelizmente, temos procurado promover tal equilíbrio simplesmente dando oportunidades para que ambos se manifestem em nossas experiências.

 

    Não creio que o caminho mais saudável seja este, mas aquele recomendado por Jonathan Edward, puritano do século 18 que escreveu o clássico tratado Religious affections, demonstrando que a experiência cristã não deve ser determinada nem pelo conhecimento científico da verdade, nem pelas emoções das experiências religiosas, mas pelos afetos transformados pelo conhecimento da verdade e pela experiência religiosa.

 

    Muitas expectativas espirituais que anelamos ou buscamos nascem das deformações do nosso caráter e desejos que o pecado criou. Não me refiro apenas ao pecado como agente deformador do nosso caráter pessoal, mas também ao pecado como agente deformador da sociedade e seus valores. Muitas vezes buscamos sensações espirituais que nascem não de um desejo sincero por Deus, sua Palavra, Reino, justiça e amor; mas para satisfazer sentimentos egoístas que nascem de emoções não transformadas. Somos constantemente assaltados por sentimentos de medo, insegurança, rejeição, abandono, necessidade de afirmação, reconhecimento, aceitação. Tudo isto determina as experiências que buscamos e o rumo que damos ao conhecimento que adquirimos. Desejos desordenados promovem experiências também desordenadas e, finalmente, falsas.

 

    É isto que Tiago afirma em sua carta, quando diz: "De onde procedem guerras e contendas que há entre vós? De onde, senão dos prazeres que militam na vossa carne? Cobiçais e nada tendes; matais e invejais, e nada podeis obter; viveis a lutar e a fazer guerras. Nada tendes, porque não pedis; pedis e não recebeis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres." Para Tiago, a oração nasce dos desejos, mas uma vez que nossos desejos encontram-se confusos e desordenados, as orações também acabam sendo frutos desta desordem. Ele afirma que oramos mas não temos nada porque nossas orações e súplicas nascem de nossas vaidades.

 

    George McDonald certa vez orou assim: "Senhor, minhas orações nascem daquilo que eu não sou; espero que tuas respostas façam de mim o que de fato devo ser." Ele reconhecia que suas orações nasciam do seu medo, da sua insegurança, da necessidade de afirmação ou reconhecimento - mas também sabia que por meio dela, seus desejos poderiam ser transformados.

 

    Tanto a razão como os desejos precisam experimentar a conversão. A primeira, por ser mais objetiva, é aparentemente mais simples. A segunda, por sua subjetividade, é mais complexa. Há muitas pessoas hoje orando pela guerra, não pela paz, mas pela guerra, para que um país se mostre mais poderoso que o outro, vença e humilhe o outro. Tiago pergunta: "De onde nasce este desejo?" Nasce de emoções não convertidas, de vaidades e medos que ainda dominam as almas de muitos cristãos. Nossas orações são um reflexo dos nossos desejos, dos nossos anseios mais íntimos e verdadeiros.

 

    Precisamos deixar Jesus nos perguntar mais uma vez: "O que queres que eu te faça?" E aí, ao sondar nossos corações, iremos buscar aquilo que é mais nobre, mais glorioso e eterno. Oraremos pela paz, pela negação do poder e para que os homens aprendam a amar, dividir e servir uns aos outros.

 

    Pr. Ricardo Barbosa de Souza.