REFLEXÕES SOBRE O FORTE CRESCIMENTO EVANGÉLICO

                                            

 

    “Não haverá missas, nem altares, nem sacerdotes, que as digam: morrerão os católicos sem confissão, nem sacramentos: pregar-se-ão heresias nestes mesmos púlpitos, e em lugar de S. Jerônimo, e Santo Agostinho, ouvir-se-ão e alegrar-se-ão neles os infames nomes de Calvino e Lutero, beberão a falsa doutrina os inocentes que ficarem, relíquias dos Portugueses: e chegaremos a um estado, que se perguntarem aos filhos e netos dos que aqui estão: Menino, de que seita sois? Um responderá, eu sou calvinista; outro, eu sou luterano. Pois, isto se há de sofrer, Deus meu?” (itálico)

 

    Padre Antônio Vieira, preocupado com o avanço holandês e a aparente apatia portuguesa para com o Brasil, pregou um sermão bombástico em 1640. Deu-lhe um título não menos agressivo: Sermão Pelo Bom Sucesso Das Armas De Portugal contra as da Holanda.
 
    Ele já temia em priscas eras que o “pérfido calvinista” se multiplicasse na colônia de sua majestade. O sermão de Vieira, na verdade é uma oração a Deus. Temendo que os holandeses calvinistas se identifiquem com o povo mais que os católicos, rezou assim: “Que dirá o tapuia bárbaro sem conhecimento de Deus? Que dirá o índio inconstante, a quem falta a pia afeição de nossa fé? Que dirá o etíope boçal, que apenas foi molhado com a água do batismo sem mais doutrina? Não há dúvida, que todos estes, como não têm capacidade para sondar o profundo de vossos juízos, beberão o erro pelos olhos. Dirão, pelos efeitos que vêem, que a nossa fé é falsa, e a dos Holandeses a verdadeira, e crerão que são mais cristãos sendo como eles. A seita do herege torpe e brutal concorda mais com a brutalidade do bárbaro: a largueza e soltura da vida, que foi a origem e o fomento da heresia, casa-se mais com os costumes depravados e corrupção do gentil ismo..” (itálico)
 
    Hoje, sem o catastrofismo medieval de Vieira, os altares católicos não foram invadidos por milícias protestantes e nem se deixou de celebrar o natal. Nenhum católico precisa morrer sem se confessar. Entretanto, o crescimento protestante – por meio do segmento evangélico pentecostal é grandioso, como ele bem previu e temeu. As igrejas se multiplicam nas periferias das grandes cidades, os templos estão todos lotados. A agressividade evangelística não arrefece. Com  a pentecostalização das igrejas denominacionais históricas – Luteranas, Presbiterianas, Anglicanas, Metodistas, Congregacionais, etc.  – o protestantismo de origem reformada também cresce assustadoramente. A presença evangélica já é tão notória que os intelectuais da academia dissertam sobre ela. Faz-se notícia na mídia e continua incomodando a cúria católica romana.
 
    As igrejas evangélicas não se multiplicam isentas de problemas e dificuldades. Por serem comunidades humanas há idiossincrasias e virtudes; beleza e vício. Por estarem situadas historicamente no tempo e na cultura copiam os erros da sua época. É mister que no frenesi do crescimento, vozes se levantem para alertar os evangélicos que eles não serão a igreja dominante do Brasil, como Vieira sonhava para os católicos e temia que copiássemos.
 
    A idéia de que temos a obrigação de tornar o Brasil evangélico é tão anacrônica como a fala de Vieira. Não podemos acreditar que repousa sobre nossos ombros o dever de banir todas as expressões não evangélicas de nossa cultura. Esse discurso é mera coreografia religiosa que impressiona apenas nas liturgias internas. Por outro lado, quando realmente levado a sério, descamba para um fanatismo reacionário e intolerante.
 
    Também, há a ameaça do capitalismo selvagem. Os evangélicos – bem como a própria igreja católica – convivem com uma cultura dominada pela cosmovisão pós-moderna do capitalismo neoliberal. Nessa sociedade técnica, a religião torna-se pragmática e a piedade é instrumentalizada para satisfação pessoal. Devemos, portanto, tomar extremo cuidado de não cair no hábito de ver a Deus como se fosse uma máquina em que botões são apertados. A maior tentação para a igreja é que ela passe a ser uma organização gerida de acordo com as técnicas empresariais.
 
    Visito ocasionalmente igrejas evangélicas do hemisfério norte. Em uma delas, impressionei-me como os pastores se despiram de suas roupas pastorais. Assumiram o papel de executivos da fé. Seus escritórios parecem-se com os escritórios das grandes multinacionais; cercam-se de assessores, e se reúnem regularmente em reuniões de planejamento. Nos Estados Unidos, proliferam-se as igrejas estabelecidas sobre um marketing bem planejado. Sobram palestrantes ensinando como lubrificar as engrenagens administrativas de suas comunidades. Uma gama enorme de especialistas em crescimento de igreja palestra sobre como tornar o louvor adequado ao auditório – a orações devem ser mais curtas, as músicas mais comunicativas aos ouvidos sensíveis daqueles que não conhecem a Deus. Para esses empresários da fé, se providenciarmos bons estacionamentos, cadeiras confortáveis, ar condicionado, um bom berçário para os recém-nascidos e uma excelente lanchonete, conseguiremos lotar nossos santuários e aumentar a arrecadação mensal. Por mais bem intencionados que estejam, nenhum deles parece entender que lidamos com valores espirituais e não gerenciais. Nosso desafio não é o de lotar os auditórios, mas de inspirar corações a amar a Deus.
 
    A perspectiva da igreja evangélica tornar-se uma maioria – em muitas cidades brasileiras já existem mais evangélicos por domingo nos cultos que católicos nas missas – pode ofuscar o perigo de que estamos sucumbindo ao pragmatismo. A pergunta que se faz no mundo moderno é: funciona? Os gregos buscavam o conhecimento para compreender; os judeus queriam o conhecimento para reverenciar, mas o homem pós-moderno quer o conhecimento para manipulá-lo. Lembro-me de como os fundamentalistas acusavam – injustamente – os pentecostais de valorizarem as emoções acima da verdade.  Hoje sim vale perguntar se o neo pentecostalismo – teologia da confissão positiva e teologia da prosperidade – não hierarquiza o que é útil acima da verdade.
 
    Os evangélicos crescem rapidamente. Mas ainda somos muito indisciplinados. Temos grandes ideais mas faltam-nos normas; temos esperança, mas carecemos de direção espiritual; temos fé mas falta-nos temperança; temos coragem mas falta-nos discrição e humildade.
 
    O mais estranho paradoxo que acontece na igreja evangélica brasileira é que ela possui uma vida exuberante mas é pobre em sua teologia, tem fé mas não consegue aprofundar-se na sua intimidade com Deus. A não ser que seu desempenho externo reflita uma vida profundamente arraigada no amor de Deus, sua piedade apodrecerá e suas boas intenções sucumbirão.
 
    A única resposta que poderíamos dar ao Padre Antônio Vieira sobre tão exuberante crescimento da Igreja evangélica no Brasil é que crescemos a despeito de nós mesmos. Sabemos apenas que sua graça é mais abundante em tempos em que falhamos muito. O próprio Vieira quando viu os pecados de seus pares naquele Brasil ainda tão provinciano e mesquinho, rezou assim: “..E como sois igualmente justo e misericordioso, que não podeis deixar de castigar, sendo os pecados do Brasil tantos e tão grandes. Confesso, Deus meu, que assim é, e todos confessamos que somos grandíssimos pecadores. Mas tão longe estou de me aquietar com esta resposta, que antes esses mesmos pecados, muitos e grandes, são um novo e poderoso motivo dado por vós mesmo para mais convencer vossa bondade.”
    E a nós só resta dizer, Amém.
    Soli Deo Gloria.

Ricardo Gondim Rodrigues